A videovigilância, a Lei Nacional de Execução do RGPD e o Código do Trabalho

Os processos legislativos revelam por vezes falta de harmonia que poderia ser evitada. Vem esta afirmação a propósito da videovigilância no âmbito laboral que já suscita opiniões divergentes sobre a matéria.

Alguma doutrina tem vindo a defender que a videovigilância em contexto laboral continua a carecer de autorização prévia da CNPD, independentemente da captação de som, mantendo-se o regime anterior ao RGPD, ou seja, o disposto no Código do Trabalho.

Discordamos em absoluto de tal interpretação pelas razões que sumariamente se expõem.

O tema da videovigilância no âmbito das relações laborais era regulado nos artigos 20.º e 21.º do Código do Trabalho, impondo, na parte que importa, a necessidade de autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados nos termos do n.º 1 do artigo 21.º do referido Código.

Este preceito não sofreu qualquer alteração desde a sua aprovação pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.

Entretanto, foi publicado o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016) o qual veio alterar o paradigma de intervenção das autoridades de controlo de um esquema de autorização prévia ao tratamento para uma solução de autodisciplina e auditoria, admitindo situações de controlo prévio no seu artigo 36.º.

Com a aplicabilidade do RGPD em 25 de maio de 2018 e tendo em conta a natureza de ato de direito europeu derivado com eficácia direta nos Estados-Membros, as disposições nacionais que previam autorizações da autoridade de controlo, no caso português, a Comissão Nacional de Proteção de Dados, deviam consideram-se revogadas por incompatibilidade de regime. Está nesta situação o disposto nos artigos 18.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1, do Código do Trabalho. Isto mesmo veio a ser confirmado pelo artigo 62.º, n.º 2 da Lei Nacional de Execução do RGPD ao afirmar que “todas as normas que prevejam autorizações ou notificações de tratamento de dados pessoais à CNPD, fora dos casos previstos na RGPD e na presente Lei, deixam vigorar a data da entrada em vigor do RGPD”. O Código do Trabalho nos artigos 18.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1 não constituem uma exceção que possa preencher a previsão do n.º 5 do artigo 36.º, pelo simples facto de ter havido uma alteração do Código do Trabalho que não se pronunciou sobre as referidas normas após a entrada em vigor da Lei Nacional de Execução. Na verdade, a mudança de paradigma obriga a que o legislador nacional faça uma ponderação à luz do nosso regime.

A referida interpretação à qual não se adere parece pretender proceder a uma repristinação de normas do Código do Trabalho com três argumentos que não entendemos não ser de acolher. Em primeiro, porque o RGPD admite a possibilidade de haver autorizações prévias nalguns casos e, em segundo lugar, porque o legislador da lei de execução nacional do RGPD veio prever que a videovigilância que inclua captação de som quando as instalações vigiadas não se encontrem encerradas carece de autorização da CNPD (cf. n.º 4 do artigo 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto). Finalmente, o entendimento expresso estriba-se no facto de o legislador do Código do Trabalho não ter revogado expressamente as normas sobre videovigilância aquando da alteração do Código do Trabalho operado pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro.

Entendemos que nenhum destes argumentos colhe, porque, como vimos as normas do Código do Trabalho que previam autorizações e notificações da CNPD foram revogadas e a Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto não as repristinou como decorre do artigo 62.º, n.º 2, que apenas admite que subsistam as autorizações e notificações previstas na Lei de Execução do RGPD, o que resulta com clareza da expressão usada nesta disposição “fora dos casos previstos no RGPD e na presente Lei”. E não se argumente que o legislador nacional executou o RGPD através do Código do Trabalho na redação de 2009, pois tal seria pura e simplesmente contrário a qualquer regra de interpretação. Aliás, se o Código do Trabalho estivesse em vigor também seria revogado pela previsão da Lei de Execução do RGPD que institui um regime diverso de autorização.

De igual modo, o artigo 88.º do RGPD que admite normas mais específicas para garantir a defesa dos direitos liberdades no que respeita ao tratamento de dados pessoais dos trabalhadores em contexto laboral foi preenchido com a previsão do n.º 4 do artigo 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto.

Neste momento, apenas se encontra em vigor a autorização da CNPD para a videovigilância com captação de som em instalações que recolham imagem e som quando não estão encerradas e nos termos do n.º 4 do artigo 19.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, aplicável igualmente em contexto laboral. O que o RGPD revogou no Código do Trabalho a sua Lei de execução não repristinou.

Pedro Madeira de Brito, advogado e sócio da BAS

Mais em Comunicação